segunda-feira, 22 de outubro de 2012

O "mensalão" deveria ter sido um caso normal da vida democrática

Em artigo à Carta Capital, Fernando Filgueiras argumenta que o julgamento da Ação penal 470 pelo STF está mais carregado de moralismo do que de jurisprudência:

""PUBLICITY IS justly commended as a remedy for so­cial and industrial disea-ses. Sunlight is said to be the best of disinfectants; electric light the most efficient policeman", esplanou o juiz da Suprema Corte dos Estados Unidos, Louis Brandeis, em 1913. Em uma tra­dução livre: "Publicidade é justamen­te o remédio recomendado para doen­ças sociais e industriais. A luz do sol é o melhor dos desinfetantes. A luz elé­trica, o policial mais eficiente". No con­texto da época, o debate girava em tor­no da aplicação do princípio da publi­cidade na administração pública, tendo em vista a participação de grandes cor­porações no orçamento público norte-americano. Atribui-se a Brandeis, ma­gistrado da Suprema Corte, a formula­ção do conceito de transparência.

Naquela ocasião, a discussão sobre os monopólios na área de transporte público em Boston e as falcatruas pratica­das em seguros levaram a diversos deba­tes na Suprema Corte. A intervenção de Brandeis ressaltava a importância de tor­nar os assuntos públicos nas democra­cias e na ideia de transparência como um remédio importante para a política e pa­ra o bom andamento da gestão pública.

A transparência entrou para o léxico político como um valor inconteste. To­dos a defendem e a apontam como o re­médio inevitável para a corrupção das instituições. Entenda-se corrupção, nes­se texto, não apenas como os esquemas privados de malversação de recursos públicos, mas também como o processo de degeneração das instituições, fazen­do com que elas não funcionem com ba­se no interesse público. A transparência, por princípio, desinfeta a política e asse­gura ao cidadão maior volume de informações, permitindo-lhe cobrar seus re­presentantes e conhecer os meandros dos processos decisórios e de implemen­tação de políticas públicas.

As falcatruas dos seguros e do mo­nopólio do transporte público em Bos­ton do início do século XX alimentaram na Suprema Corte uma discussão so­bre a importância da transparência. Ho­je, ao se analisar o Tribunal Constitucio­nal brasileiro, percebe-se como a trans­parência pode ser uma virtude ambígua, se não contarmos com plena institucio­nalização das instituições democráticas.

A política brasileira tem sido acome­tida de um processo de judicialização. O processo de judicialização da política im­plica o fortalecimento do Poder Judiciá­rio diante do Executivo e do Legislativo.

Um dos argumentos para tanto é que as instituições políticas, os governos, os Par­lamentos e os partidos, em especial, estariam mergulhados em uma profunda cor­rupção da representação, o que leva ao empoderamento de instituições de cará­ter contramajoritário e dedicadas ao con­trole. Esse processo é comum nas demo­cracias consolidadas e torna o Judiciário uma espécie de bastião da moralidade, cabendo a ele o papel de corrigir os ru­mos tomados pela representação política.

A judicialização é normal nas demo­cracias. O Judiciário, especialmente as Cortes Constitucionais, são institui­ções políticas e a transparência de fato é um princípio importante da ordem de­mocrática. Dentro da normalidade de­mocrática, o Judiciário tem uma fun­ção política muito importante e a trans­parência pode, de fato, contribuir pa­ra a publicidade das ações de governos. Mas, se tomarmos o caso brasileiro, es­pecialmente no que tange ao julgamen­to da Ação Penal 470, ou, simplesmente, do "mensalão", percebe-se que ambas, a judicialização e a transparência, têm si­do sobrevalorizadas e podem acarretar em processos pouco democráticos. Das duas ordens de questões, fica o seguin­te: em que medida o fortalecimento da transparência e o processo de judiciali­zação da política ajudam a fortalecer a democracia no Brasil?
O julgamento do mensalão tem sido rea­lizado sob os holofotes da grande mídia e tem suscitado um debate entre surdos. Nunca nenhum julgamento no Supremo Tribunal Federal foi tão transparente quan­to este. E nunca uma Corte Constitucional esteve tão no centro da democracia sob o manto de salvadora da moralidade pública e dos bons costumes políticos.

Penso não se tratar de uma condi­ção de exceção, como um dos lados do debate sobre o julgamento tem defendi­do. Mas, certamente, é um processo que pode acarretar riscos institucionais se­veros para a ordem democrática. Logo, ele pode vir a ser um julgamento históri­co simplesmente pelo fato de o STF ter sucumbido à mídia e não por ter punido, sob a tutela das transmissões ao vivo das sessões do julgamento, os "mensaleiros".

No Brasil, a consolidação da demo­cracia trouxe o Judiciário ao centro do debate político. Não apenas no caso do mensalão, mas, sobretudo, no seu papel de guardião da Constituição de 1988. Se associarmos a isso o fato de que as sessões de julgamento são transmitidas ao vivo pela tevê, firma-se um contex­to em que uma instituição contramajoritária por definição sucumbe aos inte­resses de grandes grupos de mídia na conformação da opinião pública e crie uma sanha punitiva.

A posição do STF beira a irresponsabili­dade, especialmente quando um de seus magistrados aponta para a não valida­de da aprovação de reformas importan­tes no Congresso, com o suposto auxílio da compra de votos de parlamentares. Se prevalecer essa jurisprudência, não haverá prudência alguma quanto ao in­teresse público. Retroceder o debate so­bre a reforma da previdência provocaria um efeito nefasto nas contas públicas e um retrocesso democrático.

O STF deveria olhar para a experiência do juiz Brandeis e perceber que a trans­parência é, de fato, o melhor desinfetan­te. Mas também deveria notar que ela não implica uma sanha punitiva sem observar o contexto e o texto. E, mais ainda, sem observar a pouca transparência dos gru­pos privados de mídia. Se a transparência é o melhor desinfetante, a publicidade é o princípio. Isso está distante do puro moralismo. Nem exceção, nem julgamento histórico. O mensalão deveria ser um ca­so normal da vida democrática, cabendo a prevalência do império da lei e prudên­cia com os fatos e com os desdobramen­tos para a democracia brasileira. Mais ju­risprudência, menos moralismo."

Fernando Filgueiras é professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Mi­nas Gerais e coordenador do Centro de Referência do Interesse Público

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